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Lançamento Livro Medicina e Espiritualidade

Meu filho é especial, e agora Doutor?

Crianças com necessidades especiais são aquelas que, por motivos que discutiremos em breve, apresentam algum tipo de deficiência, seja física, intelectual ou associada, que acarreta limitações funcionais diversas, levando a níveis variados de dependência e cuidados especiais de sua família, escola e da sociedade.

De acordo com o Relatório mundial sobre a deficiência (OMS, 2011), temos aproximadamente 1 bilhão de pessoas com alguma deficiência em nosso planeta, sendo que aproximadamente 200 milhões apresentam deficiências mais graves e incapacitantes. Esses índices geram muita preocupação, visto que o mesmo relatório considera que teremos um aumento gradual dessa cifra a cada ano e que os governos e as sociedades não mostram preparo adequado para o que temos hoje nem para o que virá.

Para um entendimento melhor sobre ter um filho especial, vamos dividir a nossa exposição em partes:

  • Abordagem médica e terapêutica.
  • Abordagem familiar.
  • Abordagem social.
  • Abordagem espiritual.
 

Abordagem médica e terapêutica.

 

Em todos esses anos atuando na área da Neurologia Pediátrica, pude observar que assim como é difícil para a família o entendimento da situação de ter um filho deficiente também é difícil para o médico abordar essa condição com a família. Nós estamos condicionados a aceitar e lidar com o normal, quando algo foge a essa regra, o desconforto é geral. Para essa situação, apenas posso recomendar: amor, paciência e tolerância.

A primeira pergunta da família é: por que meu filho é assim? Por que tem esse problema? Por que está atrasado no seu desenvolvimento? Como médicos, nossa obrigação é buscar um possível diagnóstico e orientar tratamentos. Partimos assim para a pesquisa científica das possíveis causas.

Algumas deficiências são bem evidentes, como as sequelas por doenças que surgem no decorrer da vida, principalmente devido aos tumores cerebrais (segunda neoplasia mais frequente na infância), às complicações de processos infecciosos nas meningites e/ou encefalites, aos acidentes por traumatismos cranianos com lesão cerebral, além das complicações de doenças de outros órgãos que, na sua evolução, podem comprometer o cérebro. Temos também problemas decorrentes do nascimento, como recém-nascidos prematuros de baixo peso, infecções graves nesse período, hemorragias cerebrais e vários outros fatores de gravidade que podem acometer um recém-nascido. Essas condições são de mais fácil entendimento e, às vezes, até de aceitação.

No entanto, quando a situação se apresenta no período gestacional ou logo após o nascimento, ou vai se instalando nos primeiros anos de vida, o desconforto torna-se maior, a aceitação é mais difícil, e os questionamentos são maiores. Temos nessa categoria principalmente as doenças congênitas, sendo a mais frequente em nosso meio a Síndrome de Down, malformações, doenças degenerativas e doenças progressivas por distúrbios chamados metabólicos. Todos esses são identificáveis por exames de imagem (tomografia, ressonância etc.), exames laboratoriais e investigação de problemas genéticos.

Esse período pode se tornar exaustivo e estressante para ambos os lados, família e médico, gerando em alguns casos o rompimento da relação médico-paciente. Isso causará mais desconforto, pois a família terá que procurar outro médico e retomar todo o processo novamente; lembrando que em torno de 18% dos casos não há diagnóstico detectável pelos meios científicos atuais, não se chegando às causas esperadas. Como dito anteriormente, paciência e tolerância de ambos os lados são necessárias.

Associados a todo esse processo ainda podemos ter outros distúrbios que acompanham a doença: transtornos comportamentais, distúrbios de sono, agitação motora excessiva, convulsões etc.; aumentando a angústia da família e fazendo com que na maioria dos casos o médico tenha que intervir com alguma medicação ou indicação de outros especialistas (ortopedistas, geneticistas, oftalmologistas, dentre outros).

Independentemente da causa, é de extrema importância o processo de estimulação e reabilitação. Quanto mais precoce o início, melhor. Nessa etapa, entram mais profissionais nessa relação: fisioterapeuta, fonoaudióloga, psicóloga, terapeuta ocupacional, psicopedagoga, entre outros. Isso porque as variáveis são muitas, podendo surgir transtornos físicos (debilidades motoras, visuais e auditivas) sem alterações da inteligência, ou deficiências intelectuais com retardos mentais de graus variados sem deficiências físicas, ou ainda uma associação de vários distúrbios. Nesse mecanismo de reabilitação de envolvimento multiprofissional, é de fundamental importância a comunicação entre todos os membros da equipe (terapeutas e médicos) e a participação da família em todo o processo.

Infelizmente, a falta de comunicação é um grande fator impeditivo na reabilitação dessas crianças. A vaidade profissional não deve ter lugar nesse processo.

 

Abordagem familiar

 

Observar que algo vai mal no desenvolvimento do seu filho e receber o diagnóstico de uma doença neurológica não é uma notícia fácil de ser digerida. Desconforto, medo, angústia e até mesmo culpa são os sentimentos que surgem de imediato nos pais e familiares. Geralmente, o estresse e a ansiedade se instalam, e o profissional da saúde responsável pela condução do caso não pode entrar nesse clima, e sim saber dominá-lo e criar condições de conforto e esperança às famílias. Sempre há algo a fazer, seja para reabilitar ou melhorar as condições de vida.

Na fase inicial do problema, é possível observar que, na maioria dos casos, está presente o modelo criado pela medica inglesa Elizabeth Kubler-Ross[GRT1] , pioneira na introdução de Cuidados Paliativos[AS2] , que através das suas pesquisas e experiência profissional definiu  os 5 estágios da dor/perda/luto ou tragédia:

  • Negação: “Isso não pode estar acontecendo”.
  • Raiva: “Por que eu? Não é justo”.
  • Negociação: “Promessas e barganhas”.
  • Depressão: “Tristeza, mágoa, sensação de impotência”.
  • Aceitação: “Tudo vai acabar bem. Vou enfrentar o problema”.

É importante um olhar mais criterioso por parte do profissional para diferenciar os estágios que a família está vivenciando, pois, as abordagens precisam ser diferentes, sendo que, algumas vezes, pode ocorrer uma confusão entre uma possível aceitação com a negação e a negociação. A não observação desses processos pode gerar um aumento na sensação de culpa, abandono de tratamentos e crises no convívio familiar.  

As orientações para a família têm que ser claras e objetivas, mas não podem ser rígidas, desumanas, dogmáticas ou desesperançadas. O fardo já é pesado o suficiente, portanto qualquer peso a mais colocado de forma indevida fará desabar a base que está sendo construída. Equilíbrio entre firmeza e compaixão requer tempo e experiência, pois não podem ser confundidas com pena e humilhação. Dar condições de dignidade para a criança portadora de deficiências e aos familiares é tudo que precisam para se fortalecer na luta diária.

Não é apenas uma questão de discutir sobre terapias, medicações e exames, mas, sim, orientar, em uma conversa amigável, de acordo com as necessidades de cada paciente, sobre higiene, acessibilidade no lar e áreas de convívio social, mobilidade, alimentação, vestuário, inclusão escolar e social, utilização de equipamentos, puberdade e sexualidade na adolescência, ou seja, são muitos os fatores a serem abordados com a família. Apenas a compaixão e a paciência no atendimento podem amenizar a dor e o sofrimento pelos quais todos estão passando.

A seguir, serão dados alguns exemplos práticos que poderão elucidar o exposto até aqui.

Um paciente com grandes debilidades motoras e comunicativas terá enormes dificuldades para se expressar quanto à dor e ao incômodo de estar deitado na mesma posição a mais de uma hora; tente você ficar na mesma posição por mais de 10 minutos. Assim como se queixar se o alimento está muito ácido ou azedo, se a roupa está picando ou apertando áreas de desconforto, que está tendo cólica menstrual ou dor de dente.

Muitos colegas médicos encaminham esses pacientes ao neurologista para dar uma medicação para acalmá-los, mas não observaram que a irritabilidade, o nervosismo e a insônia estavam associados a processos inflamatórios como sinusites ou dor por cólicas, cáries, pequenos ferimentos, cálculo renal ou apenas fome e sede.

A abordagem familiar e orientação precisas na condução de cada caso correspondem a mais de 50% do tratamento. Ao ler o livro de O evangelho segundo o Espiritismo[GRT3] [AS4] , no capítulo XIV, item 9, a mensagem de Santo Agostinho foi pontual:  “Lembrai-vos de que para cada pai e a cada mãe perguntará Deus: Que fizeste do filho confiado a vossa guarda? ” . Esta passagem também serve aos profissionais da saúde, médicos e terapeutas, pois Deus também poderá nos perguntar: “Que fizestes dos meus filhinhos que coloquei sob vossos cuidados? ”

 

Abordagem social

 

Apesar de inúmeras propagandas que tentam sensibilizar a população para uma melhor aceitação de portadores de deficiências, ainda estamos longe de um modelo adequado no processo de inclusão social. Poucas são as famílias que realmente conhecem regulamentações legais que garantem os direitos de seus filhos especiais. Assim como são poucos os que seguem essas mesmas leis, que deveriam garantir melhores condições a essas pessoas.

Basta observar se, em todos os cruzamentos de ruas, as calçadas são rebaixadas para os cadeirantes e se todos os estabelecimentos comerciais têm acesso para deficientes físicos ou banheiros adaptados, ou se todos respeitam os pontos de estacionamento próprios para os deficientes e se todas as escolas têm plena aceitação e obedecem às regras de inclusão, sendo que essa lista é mais longa. Apenas é necessário que a lei seja cumprida para que a cidadania do portador de deficiências esteja garantida.

O governo fala muito em inclusão, mas as escolas não têm material pedagógico adaptado, não têm profissionais qualificados, não oferecem tutor de sala e não desenvolvem planos de reforma para a acessibilidade. Em pleno século XXI, temos famílias com vergonha de sair em público com seu filho especial, bem como pessoas que não aceitam que seu filho compartilhe uma sala de aula com uma criança portadora de alguma deficiência. A sociedade mostra mais pena que compaixão. A pena é um sentimento inerte, a compaixão é ativa e mobiliza recursos.

Atualmente, um programa de reabilitação particular é para poucos, devido ao alto custo que inviabiliza um processo mais completo; e o setor público precário em equipamentos e número de profissionais qualificados acaba gerando filas de espera desumanas, aumentando a gravidade e debilidade clínica dessas pessoas.

Na abordagem social, é necessário que os planejamentos e programas saiam do papel e das exaustivas reuniões em gabinetes públicos e sejam colocados em prática de forma efetiva. Que a população perca o medo e deixe o preconceito. Hoje ainda vemos muito mais exclusão e institucionalização dos portadores de deficiências do que a inclusão. Essa é uma situação da qual realmente devemos nos envergonhar.

 

Abordagem espiritual

 

Se fizermos a mesma pergunta que os pais: Por quê? E não tivermos fé no amor, na bondade e justiça divina, também ficaremos desconfortáveis. Além de toda conduta médica e terapêutica, é necessário o entendimento espiritual. Como disse Albert Einstein: “Deus não joga dados”.

O que estamos recebendo, seja, família, médicos, terapeutas e sociedade, é um ser espiritual que traz consigo toda a sua bagagem de comprometimentos, anseios, dores e vontade de evoluir. Quando liberto da matéria física deficitária, seja pelo sono ou pelo desencarne, terá sua mente liberta de um cérebro limitado em suas funções. Sua consciência se equilibra e passa a ter a clareza de sua existência e experiências como uma pessoa especial. Percebe nesse ponto o quanto foi ou não amado. Rememora as condições em que foi tratado por todos que se envolveram nesta sua existência sofrida, podendo gerar, de acordo com sua capacidade de entendimento e evolução, sentimentos que variam do amor e gratidão ao rancor, revolta e mágoa.

Dessa forma, quando em contato com crianças especiais, devemos transpassar o olhar além da matéria comprometida, para enxergar o ser espiritual, a criação Divina, ou seja, a luz que recebemos em nosso seio familiar e social. Devemos ainda considerar que esse espírito, agora ente familiar, pode ter vindo em nosso auxílio para que possamos exercitar ou desenvolver a generosidade, a paciência, a compaixão e o amor incondicional.

A prova ou carma não é apenas do espírito que retorna para enfrentar essa condição, e sim de todos que estão envolvidos com ele, conforme a mensagem de Santo Agostinho supracitada.

Sempre que houver possibilidade, devemos levar esse conhecimento aos familiares, dando uma nova perspectiva dessa existência colocada aos seus cuidados. Esse fato irá gerar uma nova motivação devido ao entendimento maior da realidade de ter um filho especial.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

Kardec, A. 2008[GRT5] [AS6] . O evangelho segundo o Espiritismo, [GRT7] [AS8] Brasília, FEB.

Organização Mundial da Saúde (OMS). 2012. Relatório mundial sobre a deficiência, trad. Lexicus Serviços Lingüísticos, São Paulo, SEDPcD. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/44575/9788564047020_por.pdf;jsessionid=D4A60F223FE70A77C1DF21FB34996764?sequence=4. [Acesso em: 23 jul. 2018].